Quando os Beatles dominavam o mundo, Anselmo se apaixonou por Mariana. Mariana não conhecia os Beatles.
Quando Sebastião Salgado era a constelação de Anselmo, para Mariana não passava de um dia de chuva.
Se José Saramago se destacava na melhor prateleira da estante, era Sidney Sheldon que descansava na cadeira de Mariana.
E se a realização de Anselmo era fotografar Sara Sampaio, para Mariana bastava um abdômen na capa de Sabrina.
— Esquece, doutor Anselmo. Ela só gosta de livro de banca.
Podia ser de sebos também. Toda terça-feira, quando dona Rosa ia para a faxina levava a menina, que pedia um livro na baldeação. E, ali no terminal mesmo começava a leitura.
Foi de surpresa e também por necessidade que Dona Rosa apareceu com a filha. Os rebentos dos quinze anos se sobressaíam naquelas roupinhas de desde os treze, com uma fita, um laço ou uma presilha disfarçando os vestidinhos surrados. E se vinha de shortinho enfiado, a mãe fazia amarrar na cintura a blusa preta da madrinha.
— Desculpe, doutor Anselmo — a mãe vai logo dizendo, assim que ela abre a porta — tinha as chaves da casa — o primário acabou, ela está de férias, não tenho com quem deixar. E também vamos voltar pra Bahia no meio do ano.
— Mas menores não podem trabalhar, a senhora deve saber.
— Nem se preocupe, doutor. Ela só quer é ler, não foi feita para trabalhar.
Um par de olhos castanhos assombreados por longos cílios postiços e compridos cabelos castanhos claros caíram sobre as feições curiosas de Anselmo. E lábios carnudos, rosados e semi-abertos apontando um par de dentes perfeitos comprovavam o que a mãe dizia de que a menina não fora feita para trabalhar.
A porta do estúdio ficou aberta, e Something escapava pela sala, cristalizando o clima perfeito naquele encontro de flash fotográfico.
— Mariana, esse é o doutor Anselmo. Ele é um doutor muito ocupado, não faça perguntas e muito menos entre no estúdio, filha. É o mundo dele.
— Prazer. Que música bonita é essa?
— Beatles. Só trabalho ouvindo Beatles. Você gosta?
— Não conheço — e com Um estranho no espelho nas mãos foi entrando e contemplando a sala ampla e requintada com tapetes felpudos e livros nas estantes e quadros na parede.
— Vou deixar a menina na cadeira da cozinha. Não vai atrapalhar nada o senhor, não se preocupe.
E antes de Anselmo voltar para o estúdio fotográfico, ainda deu tempo de ver Mariana passando por ele e desamarrando a blusa da cintura.
Something ainda tocava e ele pôs para voltar desde o início e repetir, repetir. Foi quando a letra daquela canção fez sentido para ele.
Não conseguia se concentrar no trabalho. Tinha prazo. Mas, de repente, passou a ter também sede de água gelada. E, depois, fome por aquele pedaço de bolo.
— Aceita?
— Ela não quer não, doutor.
Contrariado, o jeito foi esperar a faxina da semana seguinte.
— Pode trazer a menina, ela não incomodou em nada, dona Rosa.
Na outra vez, Mariana chegou com Jogos Perigosos e Danielle Steel fez companhia a Sebastião Salgado e seu Homem em Pânico.
— Filha, não misture seus livros com os do doutor.
Quando Mariana se acomodou na cadeira da cozinha com aquela sainha de estudante, Anselmo soube que seria mais um dia de sede.
— Você pode pegar os meus livros, se quiser — diz um atrevido Anselmo tomando água na cozinha.
— Nem precisa, doutor, eu sempre trago outro na sacola — e para regalo das lentes do fotógrafo, ela se levanta sem cuidado algum e tira O Desejo da bolsa que estava em cima da mesa. De tanto desejo, Anselmo não atina que Nicholas Sparks também podia proporcionar Um Incerto Estado de Graça, além daquele Salgado descansando no porta revistas da sala.
As expectativas pela volta de Mariana aumentavam a cada semana.
Quando Dona Rosa separou os livros de Saramago para espanar o pó, Anselmo mais uma vez pediu para que ela tomasse o máximo de cuidado com sua coleção. Ao sair do estúdio, um pouco depois, viu que Saramago estava esquecido sobre a mesa da sala de jantar. E misturado a eles, alguns livros de Mariana.
— Me perdoe, doutor! Terminando o que estou fazendo, já ponho eles no lugar — e gritando para Mariana: vem já tirar os seus livros daqui! Já pensou se passa traça nesses livros chiques do doutor!
Anselmo ainda se decidia se realmente seria o caso de separar A Amante de Danielle Steel da Terra do Pecado do seu Saramago, quando Mariana vem com a barriguinha à mostra em um top vermelho e seus joelhos bronzeados na saia de cigana e corre retirar O Par Perfeito e a Nora Roberts de perto de Saramago.
Ofuscado e cego naquela deslumbrância de carnes e vermelhos à mostra, Anselmo compreendeu o que era o Ensaio Sobre a Cegueira que sempre teve com ele. Ainda tentou segurar os Anjos e Demônios das mãos de Mariana, mas ela, indiferente, o deixou apenas com o seu Memorial do Convento.
Oito semanas se passam, cada semana um livro e Anselmo já queimava alguns filmes no estúdio. Divagava com as canções românticas dos Beatles e distraía-se em pensamentos que tremiam suas mãos de fotógrafo.
— Foco, Anselmo, foco! Se não você nunca vai fotografar Sara Sampaio! — passou a dizer a si mesmo.
Até que chegou a semana de carnaval.
— O doutor vai querer faxina na terça-feira de carnaval?
— Quero, sim, por favor. Como é carnaval, fala pra menina que ela pode usar a piscina. Com um calor desses...
Com muito calor, Anselmo abriu a porta da casa naquela manhã. O sol e Mariana entraram juntos. Numa sacola um bronzeador, um frasco para água e peças de biquíni.
— Bom dia, vejo que você aceitou o convite de aproveitar a piscina — diz, querendo ser simpático.
Mas o que mais arregalou os olhos do fotógrafo foram os livros que ela carregava para aquele dia.
— Bom dia, doutor Anselmo — ela diz — hoje vou começar com esse aqui — e mostra O Plano Perfeito para Dar Errado de Cameron Linda.
— Xiii, o senhor não sabe o que provocou na cabeça dessa menina com esse convite. Tive que correr na casa da prima dela para encontrar um biquíni.
— Fiquem à vontade, tenho que voltar ao trabalho.
—Mariana, depois eu quero ver se esse biquíni serve pra você — entra dizendo a mãe, enquanto as duas vão lá pro fundo da casa — essa sua prima já deu muito trabalho com as roupas escandalosas que usa.
— Não se preocupe, mãe.
O sol cada vez mais quente daquela manhã impedia que Anselmo se concentrasse no trabalho de fotografias. Só conseguia pensar no plano perfeito para dar certo que ele tinha planejado.
Às dez da manhã chamou dona Rosa:
— Estou em falta de alguns itens para a despensa. A senhora poderia, fazendo um grande favor, ir até o mercado e comprar essa lista pra mim? Não é muita coisa — e entrega o papel.
— Hum... mas vai atrasar o serviço. Isso vai demorar um pouco.
— Não tem problema, é carnaval.
Dona Rosa pensa em chamar Mariana para ir junto, Anselmo sua frio, mas depois ela desiste.
— A menina parece uma modelo naquela espreguiçadeira, posso deixar ela aqui, doutor?
Mal a porta da rua bateu, e Anselmo já estava com uma coca-cola gelada para oferecer à modelo:
— Trouxe para você, Mariana. Está muito quente aqui.
— Obrigada, não precisa se preocupar, doutor!
E toma um gole e põe o copo numa mesinha. E o copo fica ao lado do livro que estava lendo.
— Trocou o livro, Mariana?
— Aquele já estava acabando. Comecei esse.
E Quando Ninguém Está Olhando, nem mesmo Alyssa Cole, nem mesmo dona Rosa é revelado àqueles dois atrevidos, eles se permitem se olhar atrás dos óculos de sol.
— Que piscina boa que o senhor tem aqui!
— Você já pensou em ser modelo, Mariana?
Depois de uma pausa, a resposta é direta:
— Já, doutor. Quando leio meus livros, tem muita história de modelo.
— Você não quer fazer um ensaio fotográfico? Você pode posar como modelo e realizar um sonho.
— No seu estúdio, doutor?
— Sim, lá mesmo.
— Mas minha mãe falou que ninguém pode entrar lá.
— Mas modelos podem, Mariana. Vamos tirar fotos do jeito que você está.
Mariana nem se dá ao trabalho de pensar. Levanta-se e, não fossem as gotas de suor cobrindo seu corpo, quase tudo dela se revelaria naquele fio de biquíni da prima moderninha.
Não era uma Sara Sampaio, analisou Anselmo, mas Mariana tinha potencial e ele photoshop. Quando ela se volta e se abaixa para procurar a saída de banho que a prima também emprestou, Anselmo imagina tudo que podia quando ninguém está olhando.
Já coberta com a saída de banho transparente e rendada, Mariana ainda pede pelo sonho completo:
— Anselmo — ele sente um frio na barriga ao ouvi-la mencionar seu nome pela primeira vez — meu sonho é posar de modelo segurando um livro — e antes que ele dissesse qualquer coisa, ela já pegava outro livro, acalentado ao peito.
— Ninguém pode saber — Anselmo lê em voz alta o segredo contado na capa por Slaughter.
— Nem minha mãe, Anselmo.
No estúdio, a penumbra e o ar condicionado não diminuíam aquele calor da manhã. A trilha interminável dos Beatles tocava Something como o momento pedia.
— Você pode ficar bem aqui e desse jeitinho — e Anselmo toca nos braços da morena rosa, mas ela já se põe a fazer poses conforme sua cabeça sempre imaginou nas histórias lidas.
Anselmo não insiste. Começa a tirar as fotos, enquadrar os ângulos sedutores. Muito sobe a temperatura no cenário quando Mariana tira a saída de banho, deixa o Ninguém Pode Saber no divã e leva à boca o marcador de páginas.
Entre tantos flashes por segundo, Anselmo abusa do zoom e põe Mariana em close. E as lentes da máquina de Anselmo se encontram com as duas mãos de Mariana avolumando e cobrindo os seios e, entre os dentes, como faca, o marcador de páginas denunciava Os Pervertidos de Harold Hobbins.
Foi o tempo de ouvir um barulho lá fora até a porta do estúdio se abrir de supetão e dona Rosa entrar agitada:
— Eu não te falei que não era para entrar aqui, Mariana!
— Fui eu que insisti, dona Rosa, não se preocupe — e Anselmo se controla e mantém a penumbra do cenário por um instante a mais.
— Trouxe esse livro da banca do mercado para você, Mariana. E para o senhor as frutas e legumes já estão na geladeira — e dona Rosa mostra para aqueles pegos em flagrante que É Assim que Acaba.
— Obrigada, mãe! Eu queria mesmo um livro da Colleen! — Mariana aparece com saída de banho e tudo, pega o livro, saindo depressa.
Sem mais poses para fotos, sem piscina na tarde que virou dia chuvoso, sem sua Sara Sampaio posando no estúdio, obcecado, Anselmo entendeu que ainda havia uma forma de alcançar e entrar no mundo de Mariana.
Baixou pela rede e fotografou várias capas de livros que ela gostava e montou o book da sessão da manhã. No finalzinho da tarde, quando elas já iam embora, deu tempo de entregar a Mariana, pelas costas da mãe:
— Mariana, leva o seu book.
— Obrigada, seu doutor — achou lindo pela capa, não entendeu direito e guardou na sacola.
E entre fotos de capas de livros e das poses dela, caprichosamente montados de modo alternado, à noite, em seu quarto, Mariana, muito vidrada, não parava de se ver e de ler a sequência de capas de livros daquele álbum:
(Não é errado ser feliz) mas (Algum Dia) se poderá ter (Tudo que a Gente Sempre Quis). Posso ser (O Homem Invisível) (Desvendando Princesas) em (Jogos Perigosos). (Deve ter algo errado comigo) mas (Até Onde o Amor Alcança)(Tudo Acontece Aqui Dentro). Me tire da minha (A Grande Solidão) não quero ser (Um Estranho no Espelho) mas (A Química que há entre nós) me consome (Em Fogo Lento). Você é (A menina que roubava livros)(A Amante)(Onde mora o Coração) minha (Loja dos Sonhos) meus (Segredos de Uma Noite de Verão) meus (Escândalos na Primavera) (Meus Pecados no Inverno). Posso ter (Esperança) para (Um Novo Capítulo para o Amor) e para (Uma Noite Inesquecível)?
Considere (Os Segredos que nos Cercam) e faça (A Escolha – Deixe seu Coração Decidir)!!!
Na semana seguinte, dona Rosa apareceu sozinha. Mal cumprimentou o doutor pela manhã. A faxina foi pesada naquele dia. Ao final da tarde, pontualmente às 17 horas, dona Rosa foi embora, sem se despedir.
Anselmo, quando notou a ausência, foi até o lugar onde ele sempre deixava o dinheiro da diária e lá encontrou, sob as chaves da casa, uma capa arrancada de um livro:
“Os dois morrem no final” dizia Adam Silvera, com muita clareza.
*****
Três anos depois, quando Mariana já deveria ter seus dezoito anos, Anselmo recebeu um envelope, pelo correio, vindo da Bahia. E foi novamente com as mãos trêmulas dos pesadelos dos fotógrafos que ele rasga o envelope e, encontra uma capa de livro recortada com cuidado, plastificada e cujo título continha uma mensagem escrita pela Ana Cláudia Quintana:
“A morte é um dia que vale a pena viver”.
Gilberto Hackmann
Jan/22
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