Nestes dias de apreensão pela recuperação de meu pai, com o desfecho de sua partida para os braços de Deus, estive pensando que na vida há momentos em que temos o controle das ações e há momentos em que somos expectadores das ações da vida. No hospital, refém dos 10 minutos diários de conversa com os médicos, sem poder intervir, estávamos como expectadores do que a vida estaria por pregar a nós. Sem poder agir, passivos, torcendo para que o adversário que pedia vai pro gol insistentemente não fizesse seu gol, no caso, vencer a meu pai e nossas orações.
No jogo de 12 toques do futebol de mesa acontece um mesmo paralelo. Quando estamos com a posse da bola, temos 12 toques para preparar a jogada, levar a bola para o botão que já deixamos posicionado para o chute e pedirmos o "vai para o gol". Ao adversário só resta ter preparado uma boa marcação e saber arrumar bem o seu goleiro. Nada mais pode fazer. É expectador. Fica na torcida para que seu oponente falhe e erre o gol, para que a bola troque de domínios.
Como a vida. Quando estamos com a bola temos tudo para pedir para o gol e se quisermos vencer na vida, temos que marcar o gol. Se não marcamos, perdemos momentaneamente o controle e ficamos por um tempo expectadores do que a vida vai nos aprontar até pedir para o gol contra nós.
Meu pai esteve presente em minha vida muitas vezes em que tive que pedir para o gol. Foi ele que me deu o primeiro estrelão e o primeiro time de botão, quando fiz 10 anos. Lembro que ele disse a mim e a meu irmão: se vocês gostarem desse jogo, vocês terão algo para fazer juntos a vida toda. E hoje o futebol de botão é um dos motivos que mais mantém a mim e a meu irmão juntos em meio a uma vida tão sedenta por atenção. Um jogo que marcou nossa infância e que nos marca até hoje na vida adulta. Foi um gol marcado.
Foi meu pai que um dia apareceu com um cigarro aceso em casa, insistiu para que eu experimentasse por na boca e eu surpreendido, sem saber o que fazer, pus aquele cigarro na boca e me engasguei com a fumaça. E ele com seu jeito Gildo Hackmann de ensinar: tá vendo como é ruim? por isso você nem precisa pensar em fumar. E nunca senti a menor vontade de entrar nesse vício dos de alma insatisfeita. Outro gol marcado.
Foi meu pai que quando eu estava pensando em namorar sério, me orientou que a primeira coisa que eu deveria fazer era comprar uma casa para começar uma futura família. Lembro que ele me dizia: continue andando de bicicleta, mas faça o esforço para ter sua casa. E assim fiz com 18 anos meu primeiro financiamento imobiliário e comprei meu 1o apartamento, ainda solteiro, e que foi uma das melhores coisas que fiz na vida e que me ajudou muito por muitos anos. Um gol marcado.
Foi meu pai que me deu o que de mais precioso tenho em minha vida, a salvação em Jesus Cristo. Infelizmente, o casamento de meus pais não foi feliz e eles tiveram que se separar quando eu ainda tinha 16 anos e meus irmãos menos ainda. Meu pai teve o cuidado de explicar tudo para mim, o filho mais velho, em particular, na mesa da cozinha lá de casa. Falou coisas de homem para homem, algumas delas que um adolescente pueril só viria entender tempos mais tarde. E numa dessas conversas em que ele explicava sua decisão, ele me deu a seguinte orientação: procure uma igreja evangélica para frequentar. Lá você vai encontrar uma boa moça para você se casar. Graças a Deus esse gol eu consegui marcar, encontrei não só uma igreja evangélica, como também uma linda esposa e a salvação em Jesus Cristo.
Foi meu pai que um dia, dentro do carro, passando pela avenida Senhora de Fátima em frente ao Colégio Polivalente, ele me disse: quero que você estude nessa escola. E quando prestei o vestibulinho passei em 1o lugar para orgulho do meu pai que tinha ido comigo na escola para ver o resultado. Ganhei até um relógio Technos de presente, que usei por muitos anos até que roubaram. E foi a melhor escola que estudei e que me abriu muitas portas na vida, inclusive para entrar no trabalho que estou até hoje. Um golaço que marquei.
Foi meu pai que um dia propôs sociedade com uma das tecelagens que ele tinha. Propôs que eu vendesse meu carro, um gol que eu gostava muito, para comprarmos mais alguns teares e eu ficaria de sócio na empresa. Não tive coragem e talvez tenha perdido ali uma oportunidade de crescer na vida. Um gol que perdi.
Meu pai que muito se alegrava e se orgulhava de outros gols que marquei: meu casamento, o nascimento dos netos, o livro que publiquei (e que soube que estava na estante da sala da casa dele até os dias de hoje), a casa que estou residindo. Meu pai que me ensinou a andar de bicicleta, que me ensinou a dirigir um FIAT 147, que me ensinou a me barbear, que me orientou sexualmente, que me ensinou a fazer o nó de espulador. Meu pai que era meu único confidente, com quem eu conseguia forças para externar meus problemas, minhas angústias, minhas dúvidas e de quem sempre recebia uma palavra de sabedoria, um conselho valioso.
Meu pai que no leito de enfermidade conseguiu reunir os 5 filhos como nunca estiveram unidos. Que emocionou os médicos por sua força e vontade de viver. Que levou esses médicos às lágrimas e alguns a temer mais a Deus. Meu pai que me deu um último conselho valioso: procure um bom médico, faça todos os exames regularmente para que você não chegue nesse estado tão cedo. Meu pai que pediu para que eu cuidasse do irmão caçula. E que, por ironia de Deus, foram eu e ele os últimos a estarem com ele naquela UTI, ele já em coma, mas certamente nos ouvindo em suas últimas 5 horas de vida.
Meu pai que eu poderia ter curtido mais. Meu pai nunca ausente, mesmo 28 anos depois dele ter saído de casa. Meu pai que eu teria ter estado mais presente. Meu pai que me ensinou a jogar botão. Meu pai que soube jogar como ninguém o jogo da vida.
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