Dizem que o inverno dura três meses. Em alguns lugares, não passa de dez a quinze dias. Mas, o meu inverno já tem quase dois invernos.
Há um ano eu passo todas as noites ao lado de minha esposa, em coma desde o acidente. Nos casamos tarde e apaixonados e percebo como os médicos e enfermeiras muito se admiram pela forma como eu seguro a mão de Solange e converso ao seu ouvido fazendo promessas de reviver os bons momentos que tivemos:
— Assim que você voltar, vamos fazer outra viagem de trem, querida, eu prometo. Só não garanto que vai ter neve.
— Sabe aquele colar de opalas, que você diz que atrai o amor? Vai ser seu presente.
— Estive pensando... Acho que podemos, sim, adotar uma menina, vou amar do mesmo jeito.
— Logo vamos comer um bom pedaço daquele bolo red velvet que você gosta!
— Daria tudo para chorarmos de novo assistindo às Pontes de Madison.
Acho que foi por isso que hoje o doutor Maciel me chamou para uma conversa, com muito tato e cuidado:
— Osvaldo, preciso que você preste bastante atenção — o doutor foi dizendo e eu perdendo as forças. — Infelizmente, não há mais nada que possamos fazer por sua esposa. Ela chegou ao limite.
— Quanto tempo, doutor? — pergunto, medindo as esperanças.
— Talvez mais uns quinze dias. Sinto muito.
Desolado, desço até o café do hospital, como sempre faço antes de voltar para o escritório. Mas, dessa vez, não conseguia me sentir bem naquele lugar. O que era um local para um cafezinho rápido antes do trabalho se tornou um ambiente triste de hospital, com café amargo servido em bandejas frias e pão enrolado em plástico filme que embrulhava o estômago.
Então me lembro da livraria logo em frente, inaugurada há poucos meses e que eu esperava o dia em que pudesse ir com Solange visitar. Mas que servia um bom café para os leitores. Entro, o ambiente é agradável, movimentado e o café cheiroso.
Vejo uma mulher segurando um livro em uma das mãos e uma xícara em outra procurando um lugar para se sentar. Convido-a para me fazer companhia. Ela sorri e agradece:
— Obrigada, você é muito gentil!
O diálogo começa pelo livro que ela tinha em mãos.
— As Pontes de Madison, livro raro – ela diz.
— Você já assistiu ao filme? — pergunto, muito curioso pelo gosto dela.
— Uma vez, há muito tempo — ela responde e emenda:
— Meu nome é Júlia, muito prazer.
— Júlia, que nome bonito. É o nome que eu daria para a minha filha.
Duas memórias me atingem e procuro me manter equilibrado. Nisso, a garçonete chega com o pedido dela. Um generoso pedaço de bolo red velvet.
— Que enorme! Divide comigo? — E ela corta um pedaço e adoça uma lembrança à minha boca. Fico bastante constrangido e logo arrumo uma desculpa para me levantar. Parece que o destino me pregava peças nessa hora tão difícil.
Na outra manhã, retorno à livraria. Mas não vejo a Júlia. Ela aparece apenas na semana seguinte. Nem preciso convidar e ela senta-se à minha mesa.
— Acabei de comprar um pacote para um final de semana na serra. A previsão é de neve, acredita? — ela diz, se acomodando como se fosse uma velha amiga.
— Papo de vendedor, acredite. — respondo, esfriando a expectativa.
— Quer vir comigo? O pacote é para dois. — ela convida, esquentando o clima.
— Muita gentileza. Mas, não posso, minha esposa, sabe...
— Sim, você me disse. Está aí no hospital. Um ano, não é?
— Uma eternidade.
— Então, você merece um descanso. Um final de semana. Fique tranqüilo. Passeio de amigos. Sábado, onze horas, na estação de trem. Te espero lá.
Não a levo muito a sério. Mas, na saída da livraria, no estande do Harry Potter, um colar nos chama a atenção:
— Colar de opalas! Que lindo! É maldição ou vida? — Ela diz, se despede e segue em frente.
Passo as duas próximas noites ao lado de Solange, muito angustiado. Sentindo-me um traidor se fizesse a viagem. E a imagem do colar não sai da cabeça.
— Sua esposa não deve aguentar muito mais — diz o doutor na visita da manhã — se você souber de algum desejo dela, agora é a hora, Osvaldo.
Recebo a sentença do médico como um sinal dos céus. É sexta-feira, está muito frio. Vou até a livraria e compro o colar de opalas. Passo a noite com minha esposa, mas de nada adianta dar o colar para ela e o deixo na bolsa de pernoite. Naquele estado, como ela iria ver o colar?
O sábado amanhece chovendo muito. Cinco graus. Vai nevar — penso, com ironia. E, como um pecador em tentação, sou impulsionado a ir até a estação de trem.
— O que estou fazendo? — Deixo o colar guardado no bolso do casaco, e vou pensando que, certamente, Júlia não virá com esse frio e essa chuva — e ao mesmo tempo me recrimino — Nunca traí a Solange.
Ao chegar à estação, vejo a mulher misteriosa em pé, parada na plataforma, muito molhada. Tremendo de frio, braços apertando o corpo. Uma mala ao lado, no chão. Estranhamente sinto um carinho muito grande por essa mulher. Chego a pensar que até poderia amar uma segunda vez. Aperto o colar no bolso do casaco e vou ao encontro dela. Deve ser a energia das opalas me empurrando para o desconhecido.
O trem já chegava à estação. Quando Júlia me vê, abre um daqueles sorrisos de toda manhã. E seus cabelos molhados realçam um rosto branco pelo frio.
Esquecendo a timidez e as convenções sociais, eu me aproximo.Tiro o colar do bolso. Ela acompanha atentamente o que eu estou fazendo. Parece que está conferindo cada gesto que faço. Com as opalas azuis nas mãos seguro um olhar fixo dela. É quando o trem apita pela primeira vez.
Assustado pelo som estridente, caio em mim, me desperto daquele transe e olho para a mulher à minha frente e o que eu consigo dizer talvez seja a fala que meu coração ensaiou desde o último inverno:
— Me desculpe, mas o colar de opalas é para minha esposa — e recolho as opalas ao bolso do casaco. Sei que fui um tanto rude, mas não me sinto mal por isso.
Júlia não diz nada, apenas tira suas luvas, passa a mão pelos cabelos molhados, sorri e vai em direção ao trem.
Vejo que ela se esqueceu da mala. Faço menção de pegar, mas ela já desapareceu. Toca o celular. Ligação do hospital. Atendo, esperando a notícia.
— Seu Osvaldo, não sei como isso aconteceu — era o doutor — mas sua esposa despertou! Está pedindo pelo senhor, muito abalada e delirando, pois não para de falar de um colar de opalas.
Emocionado, corro para o hospital, sentindo as opalas em meu bolso quentes como a vida.
Gilberto Hackmann
Comments