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O BEIJO DO MENINO

Há muito, muito tempo, a banda tocava na praça e um menino começou a dançar. Ele se sentia flutuando nas asas daqueles sons, na música dos instrumentos.


Até que uma voz bem forte lhe disse para não fazer aquilo.


Uma vez, em sala de aula, a classe do menino ensaiava uma canção. Ele devia ter gostado daquela canção porque se pôs a cantar a plenos pulmões.


Até que uma voz bem forte interrompeu o ensaio e perguntou quem era o desafinado cantando alto daquele jeito.


Outra vez, o professor disse que a escola ia formar uma fanfarra. O menino achava maravilhoso o som do trompete. Nunca tinha visto um de perto. No dia da escolha dos integrantes, alguém perguntou qual era o seu instrumento. O trompete, ele falou.


A pessoa lhe deu o instrumento, ele o sentiu nas mãos por um pouco de tempo, ficou admirado com aquilo. Só que, ao tentar assoprar o trompete, não saiu som nenhum. Tentou uma segunda vez, e não tinha mais fôlego para soprar.


Alguém tirou o trompete das suas mãos, disse que ele não sabia tocar e deu pra outra pessoa.


Um dia, um amigo lhe disse que uma linda garota da 5ª série gostava dele.


O menino, que não sabia dançar, não sabia cantar, não sabia tocar, não sabia beijar também.


Os encantos daquela garota dançaram em seus pensamentos por muito tempo. O que ele ouvia dela era o seu canto e sua música. Os olhos claros da garota ele podia ver, mas não podia tocá-los. Os beijos ficaram apenas no travesseiro. No ensaio para o momento que nunca aconteceu.


O menino disse a si mesmo que não a merecia. E o tempo a levou.


Desde então, o menino nunca mais dançou, cantou ou tocou qualquer instrumento. Cresceu e teve outros amores. Alguns ele beijou, outros não. Até que, um dia, conheceu uma garota.


No primeiro beijo ele caprichou. Ao som de uma canção, com seus lábios dançou na boca dela. O beijo tocou o coração da garota e ela se pôs a cantar para ele.


Ela era expansiva, agitada e gostava de sair. Ele, tímido e retraído. Não a levava a lugar algum. Porque não sabia dançar, cantar ou tocar instrumento. Apenas seus beijos a prendiam a ele.


Até que um dia bem mais tarde, com uma fala ensaiada, o menino a pediu em casamento. Em um sussurro ao ouvido dela. Abraçava a moça para perto de si e suas mãos dedilhavam seu corpo. Os corações deles saltavam juntos e ele a conduzia no ritmo de seu beijo.


Antes de se decidir, a moça perguntou se ele sabia dançar. Não sei dançar, respondeu o menino.


Ela refletiu por um segundo e perguntou se ele sabia cantar. Não sei cantar, respondeu ele.


A moça afastava o seu rosto de perto, se punha a pensar, os olhos a revirar e ele temia não conseguir segurá-la mais.


Você sabe tocar, perguntou ela, por fim. Tocar não sei também, disse ele, soltando a moça e esperando mais um amor ser arrancado dele por não saber dançar, cantar e tocar instrumento.

A moça pensou, pensou, os olhos pararam de saltar e fitando o infinito ela respondeu, com uma voz bem doce:


— Não faz mal. Você beija bem.

Hoje, já velho, o menino ainda tem o seu amor.


Só lamenta que não deixe seu amor mais alegre. Porque ele não sabe cantar, dançar e tocar instrumento.


Gilberto Hackmann

instagram/gilhackmann

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