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A baixela da madrinha

  • Foto do escritor: ghackmann
    ghackmann
  • há 4 dias
  • 3 min de leitura

Na cozinha de casa tem uma cristaleira com várias xícaras, canecas e pequenos objetos de louça ou porcelana. Lembranças de lugares, cidades, alguns poucos países. Remetem a boas lembranças, oportunidades de viagens, passeios, de momentos felizes.

Há também na cristaleira uma baixela, com pratos, sopeira, travessa, pratos de sobremesa. Presente da minha madrinha para o meu casamento.

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Se as canecas me lembram de passeios por Monte Verde, Campos, cidades turísticas da região, a baixela me leva a viajar a um tempo de inocência e também a um respeitoso sentimento de respeito e, talvez, até de inferioridade.

Lembro muito bem quando eu e meus irmãos contávamos os longos dias do ano até o Natal. E como eu ficava em pé, na véspera de Natal, no jardim da frente da minha casa de esquina, esperando o carrão do meu tio surgir trazendo os primos e a madrinha, sempre séria e elegante, com seus presentes. O carrão era um Corcel, renovado de tempos em tempos, muito mais bonito que os Fuscas do meu pai.

Sempre eram os melhores presentes de Natal. O que a gente mais brincava e se divertia. Abríamos os embrulhos apressados e ficávamos muito felizes e encantados, para orgulho e satisfação da madrinha. Minha mãe corria a passar o café, meu tio já acompanhava até a cozinha, seguido pela madrinha. Que ia, discretamente, embora todos percebessem, passando de leve a ponta dos dedos sobre a mesa e demais móveis da casa para medir a intensidade de pó existente.

Como a visita era prevista, na véspera minha mãe já tinha posto todos os filhos para limpar a casa, esfregar e encerar o chão, polir os móveis e objetos todos. Mas, apesar dessa previdência, a madrinha sempre limpava a ponta dos dedos no vestido.

Meu pai tinha uma pequena tecelagem a fação no fundo de casa, se dizia industrial para meu espanto. Porém, nossa vida era modesta, sem luxos, a não ser o refrigerante Esportivo aos fins de semana. Minha madrinha tinha uma loja de roupas no centro da cidade, comerciante bem sucedida.

Talvez por isso, minha mãe sempre colocava a madrinha como superiora, como alguém a ser temida e respeitada. Tínhamos que nos comportar muito bem perante ela. Sermos educados e respeitosos. Suas visitas eram como um momento de inspeção de qualidade, de vistoria. Algo como o sargento quando entra na caserna e pega os cabos e soldados desprevenidos.

Passei muitos momentos inesquecíveis da minha infância na casa de minha madrinha, brincando com meus primos tão queridos. Era um local de refúgio a algumas confusões e momentos de tensão que ocorriam em casa, nas constantes brigas entre meus pais. Eram as férias de uma semana mais incríveis de cada ano.

Mas, apesar dos momentos de alegria e diversão na casa da madrinha, ainda me lembro do momento em que íamos tomar banho em um banheiro mais chique e com chuveiro que não sabia direito como abrir. Ainda me lembro da TV em cores e de utensílios de cozinha diferentes que faziam comidas diferentes. Do longo corredor da casa, com quartos ao lado, todos bem arrumados. E da sala de leitura intocável e pouco visitada, reservada aos convidados ilustres.

Quando me casei, minha madrinha de batismo foi minha madrinha de casamento também. Me lembro muito bem do momento em que ela me trouxe a baixela de presente. Muito satisfeita e orgulhosa do cuidado para com o afilhado, explicando a função de cada peça, de cada louça que ela ia retirando uma a uma da caixa.

Certamente, ela estava me ensinando como utilizar a sopeira, o que servir na travessa, como guardar os pratos, quando usar o pratinho de sobremesa. Eu ouvia tudo aquilo pensando ao mesmo tempo que nunca iria usar. Mas achando o presente muito bonito e elegante, como era minha madrinha.

Pouquíssimas vezes em meus mais de trinta anos de casado foi usada aquela baixela. Se é que foi usada algum dia. Mas, aqueles pratos requintados, floridos e com filetes dourados, sempre estiveram expostos na minha casa, como ainda estão na cristaleira da cozinha.

Ao lado de canecas trazidas de tantos lugares ainda fica em destaque a prataria da minha madrinha. Que me leva sempre a maior viagem, à viagem dos tempos da inocência, da fragilidade e do sentimento de que havia alguém, mesmo um pouco distante, à espreita para trazer o cuidado e a proteção ao mundo em que eu vivia e crescia.

Aqueles pratos continuam intocáveis e à vista. Não servem sopas ou purês. Mas até hoje servem lembranças e memórias de um tempo inesquecível, e acalentam sentimentos complexos de tantas relações familiares que marcaram minha vida.



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