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Xadrez

  • Foto do escritor: ghackmann
    ghackmann
  • 1 de nov.
  • 3 min de leitura

                                                                       

Era uma vida normal que tentávamos nos fazer. Meu pai não estava mais em casa, a sala era pequena, mas havia muito espaço ali. O sofá em frente à TV onde ele assistia a seus seriados de bang bang com a minha irmã no colo estava vazio e eu e meus irmãos brincávamos no chão daquela sala.

            Havia um tapete. Há pouco tempo colocado para espantar o frio, que antes não existia. No chão jogava botão com meu irmão e gritávamos gol bem na hora do Jornal Nacional. O King entrava sorrateiro e dava a patinha para quem quisesse brincar, até sair com o rabinho entre as pernas porque dentro de casa não era seu lugar.

 

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           Jogava xadrez com minha irmã. O jogo dos inteligentes. Como éramos todos conhecidos na escola e motivo de orgulho de nossa mãe. E, como eu sempre me sentia, tendo meus próprios irmãos como adversários para se saber quem era o mais inteligente.

            Os dias em que minha mãe voltava da reunião de pais eram os mais felizes. Para ela que contava em detalhes de orgulho os elogios dos professores aos filhos estudiosos. Para nós que sempre aguardávamos broncas e recomendações dos mestres. Não fazia muitos anos em que eu havia apresentado a ele o boletim da 4ª série com aprovação final nota 97. O orgulho era o meu boletim. Nota 100 no 1º ano; 99 no 2º; 98 no 3º. Está piorando a cada ano. Assim, onde você vai parar?

            Eu encurralava minha irmã com os movimentos dos peões e das torres que avançavam pelo tabuleiro. Ela ria de nervoso em procurar encontrar uma saída, um contra-ataque. Nossa mãe nos olhava de vez em quando, contente por ver os irmãos se divertindo naquela sala vazia com a TV desligada.

            Houve um tempo que eu corria para a pequena tecelagem no fundo do quintal para chamá-lo. Era a hora do seu desenho preferido da Pantera Cor-de-rosa. Eu voltava da fábrica como um leão, peito estufado com meu pai seguindo atrás. Ele se acomodava no seu sofá, ria enquanto limpava as mãos de graxa. A Pantera Cor-de-rosa nunca disse nada. Eu também não dizia nada. Só olhava para ele e para o charme da pantera. Toda tarde tinha o desenho da pantera, toda tarde o tinha no sofá, depois voltando ao trabalho e mandando eu voltar a estudar.

            O jogo de xadrez passava devagar. Muitos pensamentos interrompiam o movimento das peças. Alguns peões se perdiam pelo centro e outros corriam pelas pontas. O desejo de resgatar a dama. Mas sempre tinha uma torre forte e um bispo acusador para impedir o encontro com a dama.

            Encontro com a dama que meu pai sempre buscava toda sexta-feira à noite, naquela Sala Especial. As luzes da sala se apagavam, minha mãe se recolhia nas rezas com o bispo e ele, o rei, nos espantava para o quarto, pois não era hora para peão ficar acordado. Como o cavalo, pulávamos para o quarto, sem não espiar pelo vão da porta o que aquele homem tanto assistia escondido com a luz apagada. O rei e sua dama no encontro secreto na casa preta da casa.

            Antes de dormir, eu ainda pensava quando poderia ver a pantera cor-de-rosa ao final da noite, uma pantera negra, uma dama cor-de-rosa, uma dama branca que avançasse pelo meu tabuleiro.

            Então, minha irmã esparramou as peças. Caiu sobre o tabuleiro. Mãe, ela não sabe perder. Olha o que ela fez!, disse eu antes do xeque-mate. Minha mãe se levantou depressa, gritou que minha irmã estava tendo uma de suas convulsões. Meu pai havia abandonado o jogo. Mas o Fusca velho e com motor fundindo estava na garagem. Ainda de pijamas, colocamos minha irmã naquele fusca e no caminho ao hospital as peças daquele xadrez ficaram esparramadas pelo chão daquela sala.

 

Gilberto Hackmann

           

 

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