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CAFÉ FUMEGANTE

  • Foto do escritor: ghackmann
    ghackmann
  • 27 de jul.
  • 4 min de leitura

Por estes dias, eu observava como a fumaça subia da xícara de café quente que eu acabava de coar. Logo pensei que aquela imagem daria uma crônica. Mais que o próprio sabor amargo do café, o seu fumegante vapor devia ter um significado.


Hoje vi uma postagem de uma foto de uma xícara fumegante e a simples e direta constatação: primeiro gole de vida do dia. (crédito para Maria Dinat). Então, nestas preciosas e certeiras palavras, captei a mensagem da fumaça do café.


Observando o caminho sinuoso da fumaça, escalando os ares depressa, ainda quente e carregada de aroma e desaparecendo rapidamente com o encontro do frio da manhã, me lembrei daqueles dias em que acordávamos eu, minha mãe e meu pai por volta das 5 da madrugada todos os dias. Na verdade, eu dormia uns 15 minutos a mais e quando chegava na cozinha, minha mãe já estava passando o café e fritando os ovos para comer com pão.


Enquanto ela punha o café sobre a pequena mesa, meu pai já saía do banheiro com a barba feita, olhava torto para mim e dizia para não demorar muito. Tínhamos que chegar antes das 6 na fábrica para abrir a porta e receber os tecelões que iriam virar o tear durante o dia.


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Quando os teares começavam a funcionar, uns primeiro, outros uns segundos depois, e eu ligava a espuladeira e os fusos começavam a girar, sempre associava o barulho a uma sinfonia. Só quem ouviu o bater contínuo dos teares em um salão escuro, onde ninguém se atreve a falar ou conversar porque a cantoria das máquinas não permitiria que ninguém fosse ouvido, vai entender que o som ritmado, batido e constante é uma sinfonia de construção de vida, da riqueza do trabalho, dos sonhos para dentro da gente.


Eu nunca me atinei. Mas, o café fumegante da minha mãe, aquela fumaça em espiral, célere e passageira, não só me levava à nossa pequena tecelagem, me levava a devaneios sem fim. Enquanto eu apostava corrida com os fusos da espuladeira, disputava com a máquina quanto tempo eu conseguia deixar todos funcionando ao mesmo tempo, sem quebras dos fios, sem trocas das tramas, em meio àqueles gestos automáticos e tão mecânicos quanto a própria máquina, eu mergulhava em pensamentos, conversas, sonhos e idealizações.


De tempos em tempos um dos tecelões vinha buscar a tabuinha com as tramas e eu era trazido à realidade, não sem me sentir orgulhoso por ver minha tarefa cumprida. Ai de mim se um dos tecelões não encontrasse tramas suficientes para operar os seus teares! Meu pai que era manso com os funcionários, comigo ele conseguia dizer tudo que pensava sobre seus empregados quando eu cometia alguma falha ou deslize.


Nessas horas o meu café esfriava rapidamente e os berros e advertências do meu pai me acordavam à dura realidade do trabalho. Os olhares de compreensão, amizade e dó dos tecelões eram meu alento e conforto, ao mesmo tempo em que todos eles se sentiam previamente advertidos caso falhassem em seu trabalho também.


Não sei como eu conseguia, mas enquanto virava a espuladeira, envolvido na sinfonia do chacoalhar dos teares, eu lia muito. Era época dos grandes clássicos da literatura que a Editora Abril publicava. Livros que se compravam nas bancas de jornais. Se houve um tempo em que eu li, foi durante meus anos de espulador.


Quando terminava o expediente, ao final da tarde, corríamos para casa, tomava um banho rápido e tomava o ônibus para o colégio. Era o primeiro ano do ensino técnico. E o livro que me acompanhou durante o dia, permanecia junto durante as aulas. Um dia o meu professor de português parou ao lado da minha carteira, pegou o livro que estava sobre a mesinha e perguntou porque os livros que eu lia estavam sempre sujos de graxa.


Eu respondi que eu lia enquanto trabalhava na fábrica do meu pai. Ele achou muito interessante, perguntou como eu conseguia me concentrar e subi uns conceitos com o professor. Tanto que, um certo dia, eu fui bem em uma prova, tive a melhor nota da classe e alguém comentou maldosamente: “mas ele não trabalha”.


O professor respondeu orgulhoso: “O Hackmann trabalha sim”.


O café fumegante da manhã de cada um nos leva a ganhar a vida do dia que se inicia. Sempre fico pensando como alguém ganha o dia se não toma café logo cedo. Sem café, não se tem a fumaça para dissipar nos ares as mensagens e os mantras do amanhecer. Sem a fumaça contornando os ares, desenhando seus próprios caminhos ao encontro do invisível, não se tem como passar o dia que se inicia.


O vapor se perde na cozinha das casas, no balcão dos bares, nas mesas das padarias. O aroma do café precede ao seu sabor e muitas vezes o supera. A fumaça leva mensagens aos ares, quem sabe aos céus. A primeira oração do dia sai do café quente, da cafeteira, dos bules das mães, das mãos dos garçons, dos atendentes dos balcões.


Se o café nos revigora para enfrentar a realidade do dia, a fumaça que dele exala carrega os sonhos para os dias futuros. Não se esfrie o café. Que não falte uma vida fumegante, mesmo aquela que só se vive dentro dos pensamentos da gente.


Gilberto Hackmann

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