Minha mãe, muito católica e dogmática, nunca conviveu muito bem com a alcunha de divorciada em seus documentos. Um tabu que a acompanhou por muitos anos. Um incômodo talvez até maior que o próprio casamento que não deu certo.
Meu pai pouco se importava com o título. Provavelmente nem se deu conta. O que para minha mãe era motivo de vergonha e constrangimento, para ele era conquista de liberdade, de autoafirmação.
Como boa católica, ela casou-se com o sustento da casa, dos filhos, acarinhou suas doenças e dores, encontrou paz na solidão e em seus devocionais. Ruminou preocupações por todos os filhos diariamente e se entretinha com a amizade e solidariedade das amigas, vizinhas e irmãs de fé.
Já meu pai, na altivez da idade do lobo, aproveitou a liberdade com suas namoradas, não mais amantes. Ao visitar os filhos aos sábados, mostrava-se um homem espirituoso, divertido e revelava planos e sonhos. Vestia uma capa de quem galgava andares superiores, de quem iria prosperar, vencer na vida, de quem não tinha fracassado.
Com o tempo, os filhos cresceram. Casaram-se. Constrangimentos no altar da igreja ao não se saber se o pai seria convidado a subir ou até mesmo a comparecer. Vieram os netos. Minha mãe, agora avó, preencheu caderninhos com anotações sobre o dia dos nascimentos dos netos, sobre o amor por eles, pelos filhos. Contava suas dores e preocupações. Pode receber os netos em sua casa, fazer macarronada - seu maior carinho, pois era de afetos reprimidos - e passar tempo com eles.
Meu pai pouco conviveu com os netos. Já tinha filhos pequenos para ser herói. Tinha, finalmente, encontrado descanso em uma boa esposa e companheira e seguia sua vida procurando olhar para frente. Um fosso e um abismo com a antiga família crescia centímetros a cada ano, exigindo pontes e enlaces para que ninguém ficasse para trás.
Os filhos do novo casamento do meu pai receberam seu sobrenome. Minha mãe, separada, havia perdido aquele sobrenome. Sentia incômodo. O documento do governo fazia questão de lembrá-la que ela tinha ficado para trás. Não tinha mais pertencimento no nome da família. Para mim e meus irmãos sempre foi indigesto escrever o nome de solteira da nossa mãe quando solicitado por alguma autoridade. Acredito que para ela muito mais.
Meu pai se orgulhava de levar seu nome adiante. Os primeiros filhos crescidos e prosperando, levando seu nome. Os segundos filhos pequenos e cheios de vida, perpetuando seu nome para futuras gerações.
Até que um dia, um telefonema da esposa de meu pai comunicou que ele tivera um infarto. Ficou dias no hospital. Os filhos se reuniram à sua volta. Semanas depois veio a falecer. No dia de Finados. Como hoje.
No velório, o que mais me levava às lágrimas e doía minha dor era me deparar com a concretude dolorosa da ausência. De ver diante de mim, o corpo de um homem que foi meu pai, mas que nos privou de muitos anos de íntima convivência. Aqueles anos de ausência pesaram muito naquelas horas.
E o mesmo constrangimento dos dias dos casamentos surgia naquela hora triste. Trazemos a mãe ou não? Minha mãe quis comparecer ao velório. Se aproximou, rezou, abaixou a cabeça. Talvez agradecesse aos céus. Não por rancores, que não mais tinha. Mas por graça pelo pai de seus filhos. E pelo momento em que seu sofrimento e calvário particular tinha fim. Fim no dia de Finados.
Alguns dias depois, visitando minha mãe, puxando assunto sobre o velório, a vida que meu pai teve, vendo minha mãe com um semblante um tanto mais leve, aparentemente livre de algumas amarras invisíveis do catolicismo, ao perguntar o que ela sentia, além da surpresa, tive o entendimento triste e cruel do tanto que minha mãe sofria em seu constrangimento:
“Mãe, como a senhora está se sentindo?”
“Ah, bem. Pelo menos agora sou viúva. Não preciso mais falar que sou divorciada”.
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