Minha esposa sempre me alerta sobre minha teimosia. Teimoso, não levo muito a sério o que ela diz. Eu me considero até muito razoável, compreensivo e tolerante.
Se no Divertida Mente tivesse um personagem Teimosia, talvez eu me identificasse e viesse a reconhecer esse defeito. Foi fácil identificar alguns dos sentimentos que representam a personalidade de minha esposa, ao assistirmos juntos à animação. O duro foi quando ela perguntou com qual sentimento eu me identifiquei e eu ter concluído que foi a Nostalgia.
Sim, aquela velhinha presa no passado nostálgico.
Tenho o costume de ficar passeando pelos canais da TV. Ontem, parei na Rede Brasil onde um episódio dos Waltons estava no final. A Rede Brasil mostra todas as séries e desenhos do passado. Fiquei assistindo aquele John Boy vivendo suas aventuras na cidade, uma bela moça que gostou dele e ele voltando para casa. Família grande reunida. E, ao final, a clássica cena de um de seus irmãos ou irmãs irem se despedir do irmão mais velho no quarto.
Quando a luz se apagou, eu fiquei lembrando por quê não assistia a esse seriado tão famoso e delicado dos anos 1970. Certamente, eu seria um fã e me envolveria muito com os episódios e toda a história daquela família e do irmão mais velho, como eu sou.
Não assistia porque passava na Globo, nos finais das tardes de sábado. E eu não assistia a TV Globo. Sim, já naquela época eu era contra a Globo e seu poder dominante. Hoje vejo o pessoal da direita boicotando a Globo e me divirto porque já fazíamos isso há muito tempo exatamente porque julgávamos o canal como de direita.
Sem querer dar razão à minha mulher, busquei lembranças de vezes ou situações semelhantes. Como a Copa de 1982 em que eu assistia aos jogos com o som da tevê mutado (porque era a Globo que transmitia com exclusividade), mas ouvia a narração de Sílvio Luiz em meu radinho de pilha. Hoje, quando revejo lances daquela copa narrados pelo grande Luciano do Valle, penso que perdi uma narração de muita emoção e qualidade por causa de minhas convicções.
Como uma vez que a turma da minha classe do ensino médio combinou de irmos ao shopping center Iguatemi, recém inaugurado em Campinas. Não tinha o costume de sair em grupinhos, aliás, nem muitas amizades eu tinha. Mas, fui com eles.
Entrando no shopping, andando pelas escadas rolantes, espantado com aquelas vitrines, roupas, sapatos e muito mármore para ser pisado e luzes iluminando minha cabeça, eu lembro que me senti bastante desconfortável ali. Ficava pensando o que os amigos do PT iriam achar me vendo naquele templo do consumismo.
Lembro que fomos ao cinema. Passava Endless Love. Eu ainda curtia um amor escondido, paixão de infância e aquele filme me deixou preso em meu mundo particular, encontrando mil razões e subterfúgios para sacramentar os acertos do meu mundo feliz e nada mais, como cantava Guilherme Arantes.
Porém, meses mais tarde, um pouco tarde demais, soube que uma das garotas da turma estava interessada em mim. Uma moça bonita e inteligente. Acho que até se sentou ao meu lado no cinema. Mas estava tão escuro ali que eu não percebi. A ilusão da minha história estava passando naquele filme e tudo aquilo bastava para eu me sentir confortável em meu mundo.
Naqueles exaltados anos oitenta, enquanto os colegas da classe contavam dos bailinhos no clube da cidade, dos discos que compravam, das canções temas das novelas, da moda das roupas coloridas e dos cabelos volumosos, eu me recolhia diante do meu rádio toca-fitas e passava horas esperando a música romântica para gravar.
Preenchi dezenas de fitas cassete. Vivi horas e horas os anos 80 sem sair de casa.
Minha mãe, espantada, chegou a dizer: “Se eu soubesse que você gostava tanto de música, teria comprado esse rádio antes”.
Não faz muito tempo que aquele verso de Lulu Santos pôs luz em minha atenção: “Há tanta vida lá fora”. Sim, havia muita vida fora do meu mundo. Deve haver, ainda, muita vida fora nos dias de hoje.
Por décadas não consegui escrever porque as ideias e temas que me vinham colidiam com o meu mundo ao derredor. Por dentro, eu ia me transformando muito lentamente, mas o mundo ao qual eu mostrava as caras estava cada vez mais distante do que aquele que se transformava em mim, ou do que eu queria dizer, contar ou mostrar na escrita.
Quando voltei a escrever, publicando algumas crônicas, o primeiro livro tão cheio de palavrões, com um personagem maroto e malicioso, não demorou para que uma antiga colega dos bancos escolares me dissesse: “Aonde foi parar aquele menino tímido que a gente conhecia?”
O menino tímido continua tímido. Talvez uma ou outra barreira tenha se desgastado com o tempo. Algum vento de mudança desmoronou alguma parede dentro de mim e me permitiu espiar um pouco pra fora. Mostrar um pouco para os de fora minha visão de mundo a partir do meu próprio.
Minha esposa, além de me considerar teimoso, também me alerta sempre para “não perdermos oportunidades”. Quando eu a ouço e a sigo e, em um passeio, em um cinema, um restaurante, um shopping, vejo cenas, pessoas, situações e tenho insights e ideias para uma crônica, um personagem, um livro, ela corre se gabar de sua razão em insistir em me tirar do comodismo do meu lugar seguro.
Quando começamos a namorar, um dia ela trouxe uma torradeira para minha casa. Passamos uma tarde de sábado fazendo torradas e passando manteiga, geleias e requeijão. Eu e meus irmãos gostamos tanto, que ela foi embora e deixou a torradeira mais uns dias conosco para aproveitarmos a novidade.
Minha mãe chegou a dizer que a gente era muito caipira e que tinha muita coisa legal que não conhecíamos. Nós que apenas tínhamos torradas a partir de pão-duro torrado na forma no forno do fogão.
A verdade é que fora do nosso mundo e bem distante de nossas convicções, há muitas torradeiras que podem ser trazidas para dentro, incorporadas à nossa vida. A cada torrada, uma experiência nova salta para ser aproveitada com creme de avelã, manteiga especial ou geleia de frutas, acrescentando um pouco de vida e gosto. Sabor e experiências.
Nunca assisti a um episódio completo dos Waltons. Sempre peguei o finalzinho. Aquele último trecho em que os irmãos de John Boy se reúnem para contar das experiências daquele dia ou daquela aventura do episódio, geralmente com um bom humor. Confortados com as lições trazidas.
Há muito a aprender com a vida, com as pessoas ao redor, com experiências e pequenas e grandes aventuras. Como é bom poder chegar na hora de dormir, ainda com a luz acesa, enquanto tantos já dormem, lembrar dos aprendizados do dia, do que foi acrescentado em nossa experiência. O quanto avançamos em nossa caminhada. Que minhas e nossas convicções teimosas bobas não impeçam tanto de viver experiências e sentimentos novos. De sermos moldados e transformados um pouco a cada dia para que aquela criança teimosa fique um pouco para trás e as pessoas venham perguntar aonde ela foi parar.
Que ao final dos dias, cada vez mais eu possa dizer a mim mesmo, antes de apagar a luz do quarto:
Boa noite, John Boy.
Apagar a luz e dormir.
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Ficheiro: Richard Thomas John-Boy Walton 1973.JPG
Criação: 17 de agosto de 1973
Eu me reconheci de cara nesse texto. Sou teimosa demais e não consigo sair do meu mundo particular e morro de medo de deixar alguém nele. Texto muito bom.